O impacto cultural e social da transformação de afetos em produtos de consumo
Entre amor e mercado: onde estamos?
Nos últimos anos, o universo dos doramas BL (Boys’ Love) e GL (Girls’ Love) deixou de ser um subgênero escondido nos cantos mais discretos da cultura asiática para se tornar uma verdadeira potência comercial. Plataformas de streaming disputam contratos, empresas de publicidade investem pesado e atores se tornam fenômenos globais. Mas, em meio a esse crescimento meteórico, uma pergunta incômoda paira no ar: até que ponto esse boom é, de fato, uma celebração da diversidade e não apenas mais um movimento de mercado que lucra com afetos marginalizados?
Quando representatividade vira produto
A ascensão dos doramas BL e GL, especialmente na Tailândia, Coreia do Sul, Japão e Filipinas, carrega consigo um paradoxo desconfortável. A indústria vende o amor LGBTQIA+ como entretenimento enquanto, fora das telas, muitos desses países seguem negando direitos civis, igualdade e reconhecimento pleno para essas comunidades.
Na Tailândia, maior exportadora de doramas BL no mundo, vemos um mercado bilionário que movimenta desde bilhetes de fanmeeting até produtos licenciados e contratos de publicidade. Ao mesmo tempo, o casamento entre pessoas do mesmo gênero segue não sendo legalizado no país. É o amor que pode ser consumido, mas não vivido plenamente.
A Coreia do Sul entra nesse jogo com passos mais tímidos, mas não menos impactantes. “Semantic Error” e “Our Dating Sim” não só quebraram recordes como também mostraram à indústria que existe uma audiência faminta por histórias queer. No entanto, o cenário social segue carregado de conservadorismo, onde a simples saída do armário de um artista pode significar o fim da carreira.
O Japão, com sua tradição nos mangás yaoi e yuri, também vê o mercado se adaptar aos tempos de streaming. Obras como “Old Fashion Cupcake” e “Minato’s Laundromat” fazem sucesso internacional, mas não sem críticas. Afinal, grande parte do BL japonês é historicamente pensado para mulheres heterossexuais, frequentemente desconectado da realidade da comunidade gay japonesa.
Se olharmos para o GL, a situação é ainda mais frágil. Muitas produções são moldadas sob um olhar masculino heteronormativo, que não representa, não respeita e, muitas vezes, distorce a vivência sáfica. A relação entre mulheres, nesses casos, vira objeto de fetiche, apagando suas subjetividades e reduzindo-as a um espetáculo para consumo masculino.
Entre o avanço e o retrocesso
É inegável que o mercado BL e GL abriu portas, gerou conversas e permitiu que muitas pessoas, especialmente fora da Ásia, tivessem acesso a narrativas LGBTQIA+ que antes eram invisíveis. A representatividade importa. Mas ela não pode ser confundida com consumo puro e simples.
Quando a indústria escolhe, sistematicamente, histórias que evitam qualquer embate real com preconceito, discriminação, política ou a luta por direitos, ela entrega uma fantasia palatável, confortável — e, muitas vezes, irreal. É o amor queer higienizado, embrulhado em estética impecável, trilha sonora suave e finais felizes que ignoram as dores da vida real.
Essa desconexão não é só um problema ético. Ela impacta diretamente na construção da percepção pública sobre o que é ser LGBTQIA+. O risco? Manter o status de “fantasia” enquanto os direitos seguem sendo negados.
Refletir é urgente — e inegociável
O sucesso dos doramas BL e GL é, sim, uma vitória em muitos sentidos. Mas também carrega responsabilidades. A indústria precisa — e deve — olhar para além do lucro. E nós, como fãs, também.
Consumir é, inevitavelmente, um ato político. Então fica o convite para refletir: estamos apenas consumindo narrativas que nos fazem sentir bem ou também apoiando produções que, de fato, representam, dignificam e dão voz às pessoas LGBTQIA+ na Ásia e no mundo?
Semana que vem tem mais!!
Redação Doramazine
Imagem: Doramazine