Um mergulho sensível no luto, na arte e na incomunicabilidade que une e separa as almas
Poucos filmes contemporâneos exploram com tanta precisão o silêncio e o vazio emocional quanto Drive My Car (2021), de Ryusuke Hamaguchi. Inspirado em um conto de Haruki Murakami, o longa transforma a dor íntima em matéria poética e teatral. É um filme sobre o que não se diz, sobre as falhas da linguagem e sobre como a arte pode, paradoxalmente, curar e expor as feridas mais profundas.
Assistir a Drive My Car é como atravessar uma estrada onde cada curva reflete um eco do passado, e cada diálogo carrega o peso do não dito.
Sinopse (com spoilers)
Yūsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) é um ator e diretor de teatro casado com Oto (Reika Kirishima), roteirista de TV. O casal vive uma relação complexa: amor e traição coexistem silenciosamente. Após descobrir a infidelidade de Oto, Kafuku evita confrontá-la — e pouco tempo depois, ela morre subitamente de um aneurisma, deixando-o preso a uma dor que ele nunca verbalizou.
Dois anos depois, Kafuku é convidado para dirigir uma montagem multilíngue de Tio Vânia, de Tchekhov, em Hiroshima. Lá, ele é obrigado a aceitar uma motorista particular, Misaki Watari (Tōko Miura), jovem introspectiva que carrega suas próprias marcas: o trauma da morte da mãe, em um deslizamento de terra que destruiu sua casa na infância.
Durante as longas viagens diárias, o silêncio entre eles lentamente se transforma em escuta. Através da convivência, ambos revelam suas perdas, culpas e a dificuldade de seguir vivendo. O carro, espaço de isolamento e catarse, torna-se um confessionário sobre o que o teatro, a vida e a dor ainda têm a dizer.
Análise dos personagens
Kafuku é o arquétipo do homem japonês contido, moldado pela disciplina e pela vergonha. Sua contenção emocional ecoa a rigidez social japonesa diante do sofrimento íntimo. A incapacidade de confrontar Oto antes da morte é reflexo dessa barreira cultural: o silêncio como forma de preservação.
Oto, ainda que ausente durante a maior parte do filme, é um espectro ativo. Suas histórias — narradas durante o sexo, em um estado de transe criativo — simbolizam o entrelaçamento entre eros e arte, vida e ficção. Sua voz gravada, usada por Kafuku nos ensaios, torna-se uma presença fantasmagórica que o ator não consegue desligar.
Misaki, por outro lado, encarna a dor sem discurso. Filha de uma mãe abusiva e emocionalmente instável, ela aprendeu a calar-se para sobreviver. É apenas no diálogo final, diante das ruínas de sua antiga casa, que ela e Kafuku encontram um momento genuíno de libertação: dois fantasmas que finalmente se veem.
Aspectos técnicos
A fotografia de Hidetoshi Shinomiya é contemplativa, marcada por planos longos e uma luz naturalista que acentua o tempo emocional das cenas. O uso do carro Saab vermelho é simbólico — um espaço móvel e íntimo que contrasta com a imobilidade interior dos personagens.
A trilha sonora minimalista de Eiko Ishibashi reforça a atmosfera de introspecção. Não há melodrama, apenas acordes sutis que preenchem o vazio com delicadeza.
O roteiro, coescrito por Hamaguchi e Takamasa Oe, transforma o conto original em uma obra existencial de três horas sem desperdício. O uso do teatro como metalinguagem — especialmente a montagem de Tio Vânia em múltiplos idiomas e em língua de sinais coreana — é brilhante. Essa pluralidade linguística espelha o tema central do filme: a impossibilidade de comunicação plena entre seres humanos.
Essa versão metalinguagem de uma peça teatral me derrubou, nunca tinha visto isso, a forma do ensaio e a conexão entre os atores foi realmente uma mensagem bem forte.
Análise pessoal
Drive My Car é menos sobre o luto e mais sobre o processo de traduzir a dor em algo comunicável. Hamaguchi constrói um cinema de respiração longa, onde o silêncio é tão expressivo quanto a fala. Cada pausa, cada olhar, cada trecho do texto de Tchekhov lido em voz neutra carrega uma camada de subtexto emocional.
O filme também dialoga com a noção budista de impermanência (mujō). Tudo está em constante dissolução — amores, memórias, culpas. A estrada que Kafuku percorre é, em essência, a aceitação de que não há destino final, apenas o movimento constante da existência.
Nas primeiras cenas (maiores de 18) quase desisti, pensei que fosse mais um daqueles filmes que quer passar uma mensagem através do sexo desnecessário, mas algo ainda me prendeu e por fim me surpreendeu, me deixando pensativa por dias.
Epílogo: O carro, o cão e o renascimento silencioso
O epílogo de Drive My Car se passa na Coreia do Sul, um tempo depois dos eventos centrais. Vemos Misaki Watari dirigindo o Saab 900 vermelho, agora sob sua posse, pelas ruas de uma cidade sul-coreana. Em casa, ela é recebida por um cachorro, e a câmera a acompanha em silêncio — ela usa uma máscara facial, sinal de um mundo pós-pandemia.
Essa sequência simples é, na verdade, uma das mais simbólicas do cinema recente.
O carro, antes extensão da alma ferida de Kafuku, torna-se agora o veículo da libertação de Misaki. Ele carrega consigo as memórias do luto, mas também a confiança e o afeto que nasceram entre os dois.
A mudança de país representa o deslocamento interno de Misaki: ela atravessou suas fronteiras emocionais, deixou o Japão — lugar da dor e do trauma — e recomeça em território estrangeiro. A Coreia do Sul simboliza o renascimento, o recomeço silencioso e possível.
O cachorro é a metáfora da vida que retorna: depois de tanto tempo vivendo como sobrevivente, Misaki enfim permite-se cuidar, criar vínculo, estar presente.
A estrada, o carro e o olhar sereno dela ao volante sintetizam a mensagem final de Hamaguchi — a dor não desaparece, mas pode ser conduzida com dignidade e ternura.
Nota e Justificativa: ⭐ 5 / 5
Drive My Car é uma das obras-primas do cinema japonês contemporâneo. Sua força está na sutileza, na paciência e na coragem de encarar o vazio sem pressa. É um filme que não oferece respostas, mas convida o espectador a ouvir — os outros e a si mesmo — com uma honestidade rara.
Se você busca uma experiência cinematográfica que ultrapassa o entretenimento e toca o âmago da condição humana, Drive My Car é imperdível. Permita-se embarcar nessa viagem lenta, silenciosa e profundamente transformadora.
Compartilhe sua visão: o que Drive My Car te fez sentir?
Encontrei um vídeo com algumas cenas aleatórias.
Esse vídeo não tem a legenda em português.
Até o próximo post!!
Marcela Fábio
CEO e Editora Chefe
Imagem: Divulgação
